segunda-feira, 12 de março de 2018

Violência doméstica: até quando vamos continuar a fazer de conta?

Já o escrevi e disse vezes sem conta, as inovações legislativas no domínio da violência doméstica têm sido muitas e importantes, mas mais relevantes são a sua exequibilidade e a eficácia dos seus propósitos.
Uma das inovações introduzidas em 2007 foi a possibilidade de instauração de penas acessórias (à pena principal de prisão efetiva) com alternativas diversas, nomeadamente acompanhamento clínico especializado.
Em dezembro de 2010 foi publicado o IV Plano Nacional contra a Violência Doméstica (2011-2013) com uma área estratégica nova - o Programa para Agressores de Violência Doméstica. Já terminou o V Plano Nacional (2014-2017) e a questão que se continua a colocar é a de saber como estão e quem tem formação específica para desenvolver esses programas. Objetivamente pergunto, enquanto cidadã e psiquiatra: quem são os responsáveis clínicos por esses programas? Quem tem competências clínicas para os indicar como alternativa? Quem tem competências clínicas para os fazer? Adquiridas onde e como? Onde estão a ser desenvolvidos? Quantos aconteceram desde a sua fase experimental, há oito anos? Quantos arguido(a)s foram a eles sujeitos ao longo destes anos? Com que resultados? Já que são penas acessórias, destinam-se apenas a arguido(a)s preso(a)s, certo?
Mais importante, porque mais grave e mais preocupante, que este tipo de possibilidade de pena acessória com estratégias pouco definidas e clarificadas é a da suspensão de pena de prisão efetiva por programas ambulatórios ou consultas específicas de psiquiatria ou psicologia.
Escreveu Cristina Teixeira Cardoso em 2012, na sua tese de mestrado "A violência doméstica e as penas acessórias": "Entendemos ainda ser relevante afirmar que, na prática - e tal resulta, como já referimos, da nossa experiência profissional -, a pena de prisão aplicada é na esmagadora maioria das situações suspensa na sua execução [cf. art. 50.º do CP], (...), sobretudo com imposição de regras de conduta [cf. art. 52.º do CP], das quais se destacam, entre as que têm conteúdo positivo, a frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica que está a ser dinamizado pela Direção-Geral de Reinserção Social [DGRS] e a sujeição a tratamento de desintoxicação de álcool ou de drogas", referindo saber "que muitas destas regras de conduta têm um conteúdo idêntico ao de algumas penas acessórias".
Qual deverá ser a minha resposta, enquanto psiquiatra e diretora de um serviço de psiquiatria, a um pedido da DGRS para "marcação de uma consulta de psicologia" após o tribunal ter determinado a "frequência regular de consultas de acompanhamento psicossocial direcionadas para o controlo da impulsividade e gestão de conflitos", ou a qualquer pedido de intervenção deste género, uma vez que - à semelhança da quase totalidade dos serviços de psiquiatria do país - não possuo, no serviço que dirijo, qualquer competência técnica nesse sentido? Só me ocorre uma: "Tal não é possível porque não temos nenhuma estrutura de apoio ou acompanhamento direcionada para agressores no crime de violência doméstica." Recuso-me a brincar aos programas e a fingir um acompanhamento psiquiátrico ou psicológico para o qual não tenho qualquer formação específica, por me parecer ética e deontologicamente reprovável. Remeter para alguém que o possa e saiba fazer não é opção válida.
Há ainda outras questões importantes a considerar. Vou relatar um caso prático, real. Um tribunal decidiu uma suspensão de pena de prisão efetiva, devendo o arguido "submeter-se a tratamento psiquiátrico". Dando-se o caso de não haver ou de não me ter sido enviada nenhuma avaliação psiquiátrica do arguido prévia à decisão judicial, com que base clínica se determina a necessidade do referido tratamento? Porquê e para quê? Com que diagnóstico? O acompanhamento psiquiátrico não é uma "pena", é (ou não) uma necessidade clínica. A própria Lei de Saúde Mental apenas prevê o acompanhamento ambulatório compulsivo - é disso que se trata - depois de um internamento, e não era o caso.
Só há uma resposta possível, em relação ao pedido que nos foi solicitado no sentido de submissão do sujeito a um "tratamento psiquiátrico", sou a informar que tal não é possível sem que haja uma informação clínica que justifique esse acompanhamento, como acontece com todas as marcações de consultas médicas.
Outro caso prático, real. Aqui foi determinado pelo tribunal a "suspensão" da pena de três anos de prisão ao abrigo "do disposto no número 1 e 5 do artigo 50.º" com "imposição de frequência do arguido em consultas de tratamento de alcoologia e de psiquiatria" e obrigação de prova "com periodicidade mensal". Um diagnóstico e a instituição de uma terapêutica é uma competência médica, parece-me. Não havendo uma avaliação clínica prévia à sentença, não há um diagnóstico nem, por conseguinte, uma indicação terapêutica medicamente sustentada, tão pouco a definição da regularidade do acompanhamento, caso se afigure necessário. Insisto, o acompanhamento psiquiátrico não é uma "pena", é (ou não) uma necessidade clínica.
Mais, com que base a decisão (não clínica) de acompanhamento determina, neste caso, a necessidade de duplicar consultas - e portanto recursos do SNS - com um acompanhamento simultâneo em "alcoologia" e "psiquiatria"? Há uma patologia dual? Se sim, o sujeito deverá ser enviado para uma unidade clínica psiquiátrica que responda por essa necessidade, caso contrário deverá ser enviado ou para uma consulta de adições ou para uma consulta de psiquiatria geral, alternativas clínicas que dependem de organismos diferentes dentro do SNS.
No caso presente, a resposta só pode ser "em relação ao pedido que nos foi solicitado, no sentido de marcação de uma consulta de psiquiatria no serviço de psiquiatria X para o sujeito supraidentificado, sou a informar que tal não é possível sem que haja uma informação clínica que justifique esse acompanhamento, como acontece com todas as marcações de consultas médicas".
Não quero que entendam estas minhas respostas, na qualidade de diretora de um serviço mas que assumo a título pessoal, como uma má vontade ou uma afronta à decisão judicial, antes como uma imposição deontológica, enquanto psiquiatra, e como uma obrigação ética enquanto cidadã que se preocupa e luta pela diminuição da violência doméstica, em particular da violência de género.
O que poderemos fazer para mudar este estado de coisas? Assim está mal. Descansa as consciências mas nada se altera. E a mortandade continua.
Psiquiatra

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