terça-feira, 10 de outubro de 2017

O bom modelo português de descriminalização do uso das drogas

O momento em que o diretor-geral do SICAD, João Goulão (à esquerda) cumprimentou o Papa Francisco, em novembro quando participou num seminário da Academia Pontifícia das Ciências, tendo apresentado o modelo português de descriminalização das drogas
Descriminalização do consumo e os resultados obtidos são objeto de estudo por muitos países que enviam delegações a Portugal
O modelo português de descriminalização do consumo de drogas e apoio e tratamento aos consumidores atrai cada vez mais as atenções mundiais. Do realizador norte-americano Michael Moore ao Vaticano, aos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, ao Reino Unido ou ao jornal The New York Times, a legislação portuguesa aprovada em 2000, e em vigor desde 2001, tem merecido muita atenção ao ponto de os responsáveis nacionais que mais de perto lidam com o tema serem convidados para participar em inúmeros seminários onde explicam como Portugal lida com o assunto. Além disso, o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) recebe frequentemente delegações de países e instituições que querem ver como o país lida com a questão.
João Goulão, diretor-geral do SICAD, confirma as visitas e tem como prova "uma galeria de fotos com personalidades notáveis no meu gabinete. Uma é com o Papa Francisco". Imagem obtida em novembro de 2016 quando participou num seminário organizado pela Academia Pontifícia das Ciências -também com o envolvimento da rainha Sílvia, da Suécia -, onde diversos especialistas mundiais falaram sobre as várias questões relacionadas com a droga. Este encontro, em que a legislação e os resultados obtidos por Portugal foram apresentados, teve lugar nos dias 23 e 24 daquele mês e, no final, ficou feito um retrato global sobre os problemas relacionados com a droga a nível mundial.
Foi também divulgado um documento com 13 recomendações. Por exemplo, sobre a necessidade de se conseguir maior apoio para os três tratados das Nações Unidas que permitem o uso de droga com fins medicinais e instituem normas muito restritas para evitar a venda e o consumo sem ser para fins terapêuticos; um outro ponto alerta para a urgência de se combater o tráfico; o documento refere também que os países devem elaborar uma estratégia para coordenar os sistemas penais e de saúde. Os participantes defendem que tem de se fazer prevenção nos jovens (até aos 21 anos) para evitar que consumam produtos estupefacientes.
O exemplo português
O sucesso do modelo nacional que já tem 16 anos - a legislação que descriminaliza o consumo entrou em vigor em 2001 - é assente em resultados comprovados. "Temos uma das mais baixas taxas do mundo de óbitos por overdose", sublinha João Goulão. Em Portugal são seis mortes por milhão de habitantes, nas idades dos 15 aos 64 anos, enquanto nos Estados Unidos são 312, na Suécia 100, na Noruega 76 e em Espanha 15, por exemplo, como sublinhou o jornal norte-americano The New York Times num artigo intitulado "How to Win a War on Drugs" (em português, "Como ganhar a guerra às drogas"), publicado no dia 22 de setembro, que compara o falhanço da política norte-americana (64 mil cidadãos morreram de overdose nos Estados Unidos no ano passado) com o sucesso do modelo português. O jornalista Nicholas Kristof entrevistou o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, o "arquiteto" (como lhe chamou) desta política, João Goulão, mas igualmente toxicodependentes e técnicos.
A razão para tanto interesse é que a opção portuguesa é única no mundo: adotou uma abordagem de saúde pública, deixando de penalizar os consumidores para os encaminhar para uma consulta na comissão de dissuasão, um organismo que só existe em Portugal. "O modelo mais próximo do nosso é o da República Checa. Os checos descriminalizaram o consumo mas não criaram as comissões de dissuasão. E estas são importantes porque visam encaminhar as pessoas para as respostas adequadas ao seu grau de consumo de drogas", explicou ao DN o diretor do SICAD. João Goulão tem recebido dezenas de delegações internacionais no seu gabinete, como um autêntico "embaixador" desta política portuguesa.
Em novembro do ano passado, o diretor do SICAD foi a Vancouver (Canadá), para um congresso sobre políticas de combate às dependências e recebeu, em Lisboa, o diretor de um programa de pesquisa sobre hepatite nos Estados Unidos, responsável pelo programa de controlo desta doença.
Mais recentemente, na última semana de setembro, não teve mãos a medir: "Recebi uma comissão parlamentar constituída por senadores e deputados australianos, um deputado escocês, um vereador do município brasileiro de São Paulo e uma delegação técnica do estado de Santa Catarina, no Brasil." Antes, esteve em Viena de Áustria a participar numa reunião das Nações Unidas em que fez uma intervenção sobre o modelo português. "Tem sido uma atividade louca de partilha da experiência e dos bons resultados que temos obtido. Hoje em dia uma das atividades que consomem mais do meu tempo é receber as delegações de todos os cantos do mundo", conta. Após a publicação de um primeiro relatório sobre os resultados da política portuguesa, assinado pelo jurista norte-americano Glenn Greenwald em 2009, começaram a chegar as delegações estrangeiras, na média de "uma ou duas por semana". Até hoje.
A visita das ministras do Canadá
A 27 de julho vieram a Lisboa as ministras da Justiça e da Saúde do Canadá, Jody Wilson-Raybould (que é também procuradora-geral do país) e Ginette Taylor, respetivamente, para conhecer a abordagem portuguesa em matéria de opioides e dar a conhecer a reforma em curso relativa à legalização e regulação da canábis no Canadá, bem como a reforma do sistema de justiça penal canadiano. Foram recebidas pela ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, que as levou a visitar uma ala livre de drogas no Estabelecimento Prisional de Lisboa mas também estiveram com o diretor do SICAD.
"Acharam o programa português muito bom, porque evitava o flagelo e a perseguição de consumidores nas ruas da cidade. Viram demonstrado que a abordagem curativa é mais eficaz, não a repressiva. Também lhes foi explicado como o Laboratório de Polícia Científica da Judiciária procura atualizar-se à medida que vão aparecendo novas drogas, como as sintéticas, e manter a par a legislação e a informação junto das polícias", explicou fonte do Ministério da Justiça ao DN.
João Goulão também recebeu as ministras canadianas: "No Canadá há um compromisso eleitoral do primeiro-ministro em legalizar o uso da canábis para fins recreativos. O grande interesse no modelo português tem que ver com o enorme problema que estão a atravessar: as mortes por overdose de opiáceos sintéticos, o cetanil está a matar quatro pessoas por dia em Vancouver. Por isso também fui lá falar da nossa experiência."

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